Memórias (esquecidas) de uma Mãe Exausta

22-10-2022

Ainda te lembras do primeiro ano de vida do teu bebé?

Lembras-te da sensação do primeiro sorriso, da primeira gargalhada, dos olhares ternurentos, da procura pelo teu abraço e da felicidade ao vê-lo a dormir? Eu não me lembro.

O primeiro ano de vida do meu filho está praticamente todo marcado por uma nuvem muito cinzenta que se apoderou das nossas vidas.

Lembro-me de ter chegado a casa, dois dias depois dele nascer, com uma sensação de terror gigante, um medo que me assolava até aos ossos por ter agora um ser tão pequenino a depender de mim, sem ter acesso a profissionais de saúde para me acalentarem o coração e colmatarem um pouco das minhas dúvidas.

Lembro-me das dores horríveis nas costas e no períneo (onde estavam os pontos resultantes da episiotomia). Lembro-me que não me sentei praticamente durante um mês.

Lembro-me dos espasmos no ânus nos primeiros dias, das dores excruciantes quando tentava defecar, como se estivesse, novamente, a parir uma criança

Como é que quase ninguém fala disto? Sempre ouvi falar em prisão de ventre mas este cenário era uma novidade completa para mim e nem nos meus piores pesadelos ou filmes de terror eu imaginei uma situação do género.
Sentia que me estavam a dilacerar de dentro para fora. E sentia isto todos os dias, mais do que uma vez por dia. Mesmo bebendo mais de 2 litros de água, mesmo evitando comer alimentos que pudessem prender os intestinos, mesmo tentando medicação, suplementos alimentares e alimentando-me de forma bastante saudável, parecia que não via melhorias.

Estive assim meses...

- "Vai passar"

- "É normal. O teu corpo está 'a voltar ao sítio' e sofre adaptações" - diziam os médicos.

Nada me confortava e nada me deixava sem dores, sem feridas, sem a sensação constante de quem eu era a única a passar por aquilo.


Lembro-me de estar o dia todo a amamentar ou a extrair leite materno. E mesmo assim o meu filho gritava dia e noite. Só podia ser fome. E doía-me horrores a amamentar.

Já começava a pegar mal na mama e apenas puxava o bico. Cada vez eu aguentava menos, cada vez eu dormia menos, cada vez mais eu chorava com dores em todo o lado e mais algum.

A dor maior era a da alma. A dor de me sentir uma péssima mãe, a dor de sentir que não era suficiente para o meu filho, a dor de sentir que era a única no mundo a sofrer disto e que ninguém me entendia.


Lembro-me do dia em que finalmente consegui amamentar de forma correta, sem dor e senti, efetivamente, o meu filho a alimentar-se.
Finalmente eu já prestava para alguma coisa. Finalmente eu podia, pelo menos, servir de alimento e servir o meu filho como só uma mãe consegue fazer.


Lembro-me do dia em que o pai do meu filho foi trabalhar, terminada a licença de paternidade.

Lembro-me que todo o meu ser tremia por ficar sozinha com o meu bebé que pouco mais tinha um mês de vida.

Lembro-me que praticamente só me alimentava quando o meu marido chegava a casa.

Lembro-me de evitar ir à casa de banho, pois tinha medo que o meu bebé precisasse de mim.

Qualquer situação em que o ouvisse a chorar era motivo para eu chorar também.


Lembro-me, muito bem, que ele não adormecia a não ser na mama ou, durante o dia, ao meu colo de pé pela casa.

As minhas dores nas costas pioraram substancialmente e o meu cansaço e frustração também, pois mal eu parava um pouco ou me sentava, ele desatava a chorar e a gritar como se eu fosse o motivo da sua insatisfação.

A minha autonomia tornou-se ainda mais escassa e os meses seguintes foram praticamente passados no quarto.

Antes do parto não sabia grande coisa sobre babywearing ou terapia do sono. Achava que, naturalmente, os bebés adormecessem por eles, desde que lhe déssemos as condições básicas (pouca luz ou nenhuma, pouco ruído, roupa confortável, fralda seca, barriga cheia).

O quarto tornou-se uma prisão quando me falaram em rotinas de sono.

Desde os dois meses de vida que o sono do meu filho é um motivo de ansiedade e calafrios para mim.

Só de saber que estava na hora de o adormecer, eu suava, chorava, sentia-me enjoada e tonta.

Durante largos meses habituei-me a dar mama sempre que ia dormir e, gradualmente com o nascimento dos dentes, comecei a ter feridas enormes nos mamilos.

Não podia mexer nem meio centímetro, não fosse a mama sair da boca do menino.

Lembro-me de dormir duas horas, no máximo, por noite, e nem eram seguidas.

Perguntei-me, muitas vezes, como não me envolvi em acidentes de carro. A maioria dos dias chegava ao destino completamente em piloto automático, sem me lembrar de quase nada do caminho nem de como lá tinha chegado.


Lembro-me de ter atirado com pacotes de leite em casa após horas a ouvir o meu filho chorar e a não conseguir acalmá-lo ou adormecê-lo. 

Lembro-me que a seguir meti-me vestida dentro da banheira a chorar e a gritar a plenos pulmões. Não parava de repetir que queria desaparecer, que queria morrer e que nunca devia ter sido mãe.

Tinha tentado por tudo não o deixar chorar, tentei dar sempre colo mas, todos os dias, tentar adormecê-lo era uma tentativa falhada.

E, nesse dia, percebi que algo de muito errado se passava comigo.

Percebi que tinha que pedir ajuda urgentemente, antes que algo de mais grave acontecesse.


Pouco ou nada me lembro de momentos bonitos com o meu filho, por mais triste e surreal que possa parecer.

A privação de sono e a depressão pós-parto impediram-me de viver a maternidade como eu e o meu filho merecíamos.

As poucas memórias que tenho são, na maioria, resultado de vídeos e fotos que fui fazendo com ele.

Sim, porque raramente as pessoas se lembram de registar momentos entre a mãe e o bebé...


Após muito trabalho em terapia, leitura, formações e cursos que fiz, aprendi a gerir as minhas emoções um pouco melhor.
Encontrei alguns caminhos e comunidades que me ajudaram a não me sentir tão sozinha.

E comecei a trabalhar o meu amor próprio para poder dar o melhor ao meu filho.

Posso dizer hoje que poderei não ser perfeita, mas tento de tudo para ser a melhor mãe que ele merece que eu seja, sem que esquecer que eu também mereço dormir, eu também mereço descanso, eu também mereço tempo para mim e eu também mereço ser algo mais além da mãe do meu filho.

© 2022  Sofia Marques |  Terapeuta de Mães e Bebés
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